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Vida em Londres por Luana Feltrin
“Não tente enterrar a dor: ela se espalhará pela terra, sob seus pés; ele penetrará na água que você bebe e envenenará seu sangue. As feridas fecham, mas sempre há cicatrizes mais ou menos visíveis que se incomodam novamente quando o tempo muda, lembrando a existência delas na pele e, com ela, o golpe que as causou. E a lembrança do golpe afetará decisões futuras, criará medos inúteis e tristeza arrastada, e você crescerá como uma criatura covarde e covarde. Por que tentar fugir e deixar para trás a cidade onde você caiu? Pela vã esperança de que em outros lugares, em um clima mais ameno, suas cicatrizes não mais machucassem e você beba água mais limpa? Ao seu redor surgirão as mesmas ruínas da sua vida, porque aonde quer que você vá levará a cidade com você. Não há nova terra ou novo mar, a vida que você arruinou foi deixada em qualquer lugar do mundo.” Lucia Etxebarría, Beatriz e os corpos celestes
Eram 4h da manhã, o despertador tocou, as malas já prontas na sala, fechadas e carregadas de tudo aquilo que era essencial. Não tinha como fazer caber toda bagagem de vinte e poucos anos em duas malas de 32kg. Eu já vinha me desfazendo de tudo aquilo que eu pensava não ser essencial, doei praticamente tudo que eu tinha no meu quarto, eu precisava estar pronta e de coração aberto para o novo mundo que me esperava, eu estava me mudando pro lugar dos meus sonhos: pra Inglaterra. O pouco que decidi manter na casa da minha mãe, não ocupava mais que três gavetas e se resumia em livros e uma caixa de sapato com cartas e outras poucas recordações.
Alguns brasileiros que se mudam para Inglaterra preferem manter os pertences em algum lugar de confiança quando saem do Brasil, uma vez que futuramente, após juntar uma boa quantia de dinheiro, pretendem voltar pro Brasil ou ir levando aos poucos para lá. Mas esse não era o meu caso, e eu não queria carregar pesos desnecessários e nada que pudesse frear meu desenvolvimento, foi uma renúncia simbólica, mal sabia eu que o peso não precisava ser material para frear a vida, o único elemento necessário para boicotar minhas inúmeras expectativas era: eu.
Hoje eu olho pra esse momento da minha vida e percebo que foi necessário um ritual de algumas poucas semanas para que eu fosse me desapegando do que eu havia construído até aquele momento. Era preciso deixar ir, para eu me deixar ir. Um dos momentos mais importantes no processo do luto é quando a gente se permite perder e se deixa ser perdido pelo outro.
Nos meu sonhos mais lindos eu me mudava do Brasil, mas se era algo da minha vontade, porque foi tão difícil esse adeus? Ou melhor, por que foi tão difícil esse “Hello”?
Ainda me lembro dos rostos, das lágrimas, das inacabáveis festas de despedida, do coração apertado e das horas de vôo onde eu carregava um misto de empolgação e dor. Foi preciso escolher, entre ter todos que eu amava e tudo que eu almejava, é como se ambos não se encaixassem juntos, pelo menos não naquelas circunstâncias.
Ao mesmo tempo em que eu tinha tudo no Brasil, eu não tinha nada, me faltavam coisas, quando digo coisas não me refiro à coisas materiais. Me faltava uma perspectiva de futuro, um senso de segurança, faltava a liberdade de caminhar com meu celular na mão sem olhar para os lados a cada minuto por medo de tê-lo arrancado de mim, ou minha vida arrancada por causa dele.
Hoje eu sofro por falta, antes também. Hoje me faltam coisas diferentes, a verdade é que quando a fantasia de morar fora vem para o plano real, quase que sempre vem acompanhada de frustrações.
A maioria das vezes o material da nossa fantasia vai ser muito melhor do que a realidade, o que fantasiamos é construção da nossa mente feito à medida do nosso desejo, em contrapartida, não se tem controle sobre a realidade.
Você pode mudar quantas vezes for necessário, mas uma coisa é certa, não existe como escapar de você, de suas limitações e de suas crenças. Hoje, quando volto pro Brasil, já não caibo naquele lugar, as pessoas estão diferentes, suas vidas estão diferentes, os valores, as prioridades, EU estou diferente.
Decidi iniciar esse texto com uma pequena parte da minha história pra expor bem brevemente a quantidade de conflitos que o processo de migração traz para o indivíduo. Antes de se ser imigrante, se é emigrante. Se decide ir, deixar o país de origem, romper com os laços culturais, com ideologias políticas, se afastar territorialmente do círculo social que se vive. Existe um abdicar de uma estrutura simbólica da qual se é parte. Esse momento é marcado por algumas perdas que em maior ou menor grau demandam um trabalho de luto.
Em um segundo momento se pisa no país estrangeiro, com toda a bagagem de emigrante, atribuindo uma denominação a mais na sua identidade a ser explorada: a de imigrante. Denominação que nem sempre recebe o acolhimento esperado. Viver entre esses dois universos é como se viver em um limbo, aquele lugar onde são deixadas coisas sem valor, que são esquecidas. Já não se é parte do lá e nem do aqui.
Angústia maior a impossibilidade de se comunicar, quando não se fala o idioma do país e não consegue colocar em palavras suas ideias para expor ao outro aquilo que está lá dentro. Todas aquelas palavras não ditas vão se acumulando no peito e se misturando em um emaranhado de frustrações, e “o que não vira palavra, vira sintoma”. Seriam os primeiros sinais de ansiedade vistos como dificuldade de adaptação? Mas com o tempo
finalmente você se “adapta” e o peso no peito se “adapta” também.
Na verdade em muitos casos o peso no peito se transforma. Ele se transforma em um medo intenso, dores físicas, inacabáveis carga horária de trabalho semanal, comida em excesso ou perda no apetite, alta irritabilidade, insônia e por aí vai. A lista dos sintomas de ansiedade vão desde sintomas mais suaves, como grande expectativa direcionadas à um evento que te trazem desconforto e aumentam seu ritmo cardíaco, até quadros mais graves como síndrome do pânico.
Uma pequena pausa aqui pra dizer: Tá tudo bem, você não precisa dar conta de tudo. Esse passo é grande mesmo e não é porque você já vive há anos fora do seu país que você tem que ser mais, ou menos adaptado. Você ja parou pra pensar que ao mesmo tempo que você pensa: “Se eu estivesse no Brasil, talvez…”, uma outra pessoa vivendo no Brasil pensa “Talvez, se eu mudasse de país…”. Não vou entrar no mérito de que a falta sempre vai estar presente em nós, mas quero pontuar esse movimento de idealizar elementos do passado na tentativa de mantê-los vivos.
Em um presente sofrido e um futuro incerto, é mais agradável viver a idealização de um lugar do passado. Esse pensamento de “ter pra onde voltar”, proporciona um certo alívio pro coração, até mesmo quando voltar não é uma opção. Mas esse “ter pra onde voltar” faz cada vez menos sentido sempre que você retorna ao Brasil para visitar e não consegue mais se ver como parte daquilo.
Em meio a tudo isso, as expectativas frustradas, o trabalho pesado, a arrogância das pessoas, o relacionamento com seu parceiro/parceira, aprender a conviver com as diferenças e respeitar os costumes das pessoas que vivem na mesma casa que você. Você acaba encontrando conforto na comunidade brasileira vivendo a sua volta, e ao mesmo tempo que isso te trás aconchego, também te trava e te impede de desenvolver o idioma e o movimento de submersão nessa nova cultura é barrado.
Mas sabe o que? Por mais que pareça clichê: não são as pessoas ao redor que estão te travando e te impedindo de evoluir, é você. Não são os fatores externos a causa da sua ansiedade, eles são apenas gatilhos que expõe um problema pré-existente, apontando a necessidade de serem cuidadosamente investigado e interpretado no plano real, para irem se moldando e encontrando espaços possíveis de fazerem sentido dentro de você. Não é sobre uma cura, é sobre a construção de símbolos e significados que permitam uma vida mais confortável e equilibrada. É sobre se perceber nos seus sintomas e ser sujeito ativo capaz de agir e criar oportunidades ao invés de reagir às adversidades externas.
Cada indivíduo se constitui diferentemente, assim como seus sintomas e funcionamento. É de uma riqueza sem igual acompanhar os processos de desconstrução e descobrimento dos meus pacientes na clínica, e se existe um mérito, este não é meu, é de cada um deles que se proporcionam viajar no universo de dentro para buscar as peças do quebra-cabeça que faltam para preencher os espaços vazios.
Sou psicóloga formada pela Universidade Federal de Mato Grosso, estudei por um ano na Universidade do Porto em Portugal, e entre os meus muitos lazeres e prazeres viajo pelo mundo, mas sem dúvida alguma posso dizer que em meio a todas as viagens que fiz a maior viagem é aquela que acontece la dentro.
Vivo em Londres desde 2016, e atualmente atendo pacientes de vários lugares do mundo. Recentemente comecei a desenvolver um projeto chamado: avião de papel. Um grupo terapêutico para imigrantes brasileiros em sofrimento psíquico.
As inscrições para o primeiro grupo já estão encerradas, o segundo grupo vai acontecer aos sábados de 9 am às 10:30 am (horário de Londres), as vagas são limitadas e estão sujeitas a disponibilidade. Os formulários recebidos após o fechamento das inscrições ficarão arquivados por ordem de chegada em uma lista de espera, podendo haver a possibilidade de abertura de outro grupo em um outro dia e horário.
A identificação com o discurso do outro é um meio de dar sentido às nossas dores e experiências. O objetivo do grupo Avião de Papel, é oferecer um espaço para fala e reflexão, onde os participantes podem aprender com as experiências uns dos outros, partilhar sentimentos, levantar questionamentos e expor as dificuldades vividas. O formulário de inscrição vai estar disponível aqui e no link da bio no meu Instagram.
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